45° Capítulo - Presente

- Elladora? – A voz do Janson soou baixa, vinda de longe, me fazendo voltar velozmente aos dias atuais.
- Oi, Jan. – Respondi esfregando minha mão no rosto.
- Você está chorando? – Perguntou ele, preocupado.


Tentei despistá-lo enquanto me levantava da poltrona e voltava a encarar o espelho:
- Não... meu olho irritou com o rímel, mas já passou.
- O que você estava fazendo? Só temos uma hora e você nem colocou o vestido.
- Uma hora? – Indaguei com espanto – Jan, me dê alguns segundos vai ser rápido agora, eu prometo.


Em tempo recorde terminei de me arrumar, e desci a escada do duplex já apressando Janson:
- Vamos, vamos! Deu comida pro Chag?
- Comida e água.
- Arrumou o jornalzinho?
- Sim, como faço sempre.


Passei os olhos pelo apartamento atrás de Chagall, que estava deitado próximo a sua cama, brincando com o seu ossinho de borracha favorito; Chag tinha sido o melhor presente que havia ganhado do Jan, por não ter filhos o tratava como um bebê.


Fui até ele e esfreguei sua barriga peluda com carinho, Chagall é um cachorro muito meigo, e posso dizer com certeza absoluta que ele puxou as duas melhores características de Janson, amável e fiel:
- Tchau, bebê! A mamãe já volta, tá?
- Vamos, Elladora, ele nem vai sentir a nossa falta!
- Tchauzinho, amorzinho. – Disse a ele antes de me levantar e acompanhar Janson.


Durante o trajeto, conversávamos sobre coisas cotidianas; sobre a exposição que estava chegando ao museu onde trabalho, sobre o trabalho dele e mais algumas dezenas de outras banalidades, até que Janson resolveu tocar num assunto delicado:
- Amor, estava pensando...
- Sobre? – Questionei-o olhando a cidade pelo vidro, e tentando esconder o desconforto que Jan acabara de me causar, pois sempre que ele começava um assunto me chamando de amor, eu sabia muito bem onde acabaria.


- Você disse, que nos casaríamos quando você conseguisse trabalhar no museu, ganhasse bem, e o suficiente para ter uma vida confortável... você conseguiu, certo?
- está certo - simplifiquei.
- Então você disse que nos casaríamos quando tivéssemos um bom apartamento, agora temos... e vamos combinar, é o apartamento dos nossos sonhos.
- Foi - Respondi a ele, sem entusiasmo.


- Ai você disse que faltava um cachorro, temos o Chagall... e agora? Falta o quê?
- Jan - Resmunguei sem a menor paciência - Agora não é hora de discutir isso.
- Você sabe o quanto eu sonho com isso, não sabe?
- Sim, eu sei.
- Estamos juntos há tantos anos... e além do mais, logo seremos velhos demais para nos tornarmos pais.


- Pais? - Foi impossível eu não me exaltar - Já conversamos sobre isso milhares de vezes, Janson Bencini, crianças não fazem parte dos meus planos, nem hoje nem pra daqui setenta anos.
- Mas é natural! - Exclamou ele, ao tentar me convencer pela enésima vez, enumerando a ordem natural da vida de um ser humano:
– Crescer, hãm... conhecer alguém especial, se apaixonar, casar, ter filhos, netos... uma casa no campo... você não tem a mínima vontade? – Ele não me deu tempo de responder – Não é possível!


- Você sabe que eu não sonho com isso. – Fez-se silêncio por algum tempo até que ele voltou a me questionar:
- Tá certo, mas... e casar? Existe essa hipótese?
- Conversaremos depois, ok? Agora não estou com cabeça, Jan.
- Certo – Respondeu ele, com amargura, elevando o tom de voz – Eu mereço isso, não é? Não faço parte dos seus sonhos, dos seus planos.
- Janson, quer parar? – Tentei brecar a discussão, mas ele me ignorou.


- Nunca estive em primeiro lugar na sua vida; Pra falar a verdade, sempre fui um estepe pra você... desde que aquele maldito Urik sumiu.
Senti meu estômago revirar, e percebi que a discussão iria engrossar.
Desde que começamos a namorar, Janson nunca mais tinha pronunciado o nome de Urik, raramente referia-se a ele, e quando acontecia, nunca dizia o nome:
– É bem feito pra mim! Porque todos os dias eu tenho que lutar contra o fantasma daquele, daquele filho da... mãe! Que não sai da sua cabeça, não some das nossas vidas.


- Você não sabe do que está falando, eu não penso mais... ne... nele.
- Ah não? Então por que gaguejou pra falar?
- Porque você está me assustando!
Ele parou o carro bruscamente, e pude ouvir as buzinas vinda dos carros atrás de nós.


Então ele saiu do veículo sem se importar se iria tomar uma vaia, ou apanhar de algum motorista descontrolado, e parou ao lado da minha porta:
- Janson, o que você está fazendo? Estamos atrasados, sabia? – Indaguei, enquanto abria a porta do carro para ir atrás dele.
- Estou cansado de ser a segunda opção na sua vida, Elladora...


- Sempre achei que as coisas iriam se resolver com o tempo, que você iria esquecer aquele... panaca! Iríamos crescer juntos e você iria me amar; mas, olha pra mim! Daqui a pouco serei um cara de meia idade, que sonha em constituir uma família, com o sonho de ter filhos... Mas, você... – Ele riu abafado e cheio de rancor - Você, não consegue nem ser fiel, você sai com qualquer coisa que sorria na sua direção.
Eu o encarei, e não soube exatamente o que dizer, apesar de nunca ter mentido para o Janson que eu me envolvia com outros caras, era a primeira vez que ele me cobrava:
– Eu tenho a impressão que você age como se fosse o Curtis, vocês fizeram um pacto? Ele foi embora e você ficou no lugar dele machucando as pessoas? É isso?


Devido as circunstâncias, decidi reagir:
- Você sabia que iria ser assim, então não venha com cobranças agora; Eu nunca menti, nunca prometi que seria diferente, então se te incomoda tanto, você deveria ter dito antes, quando eu não estivesse atrasada para um compromisso importante, Janson.


- Você sabe por que eu não disse antes? Porque você SEMPRE tem um COMPROMISSO mais IMPORTANTE DO QUE EU! – Ele berrou na minha cara, me fazendo paralisar tamanho o susto – Ir ao supermercado é mais importante do que eu, sair com o Chagall é mais importante, ir ao curso de jardinagem que... eu nem sei se existe é mais importante! Você nunca reparou nisso?!
- Jan, eu... Nunca reparei, achava que pra você estava tudo bem – Respondi hesitante.


- Pois não está, DROGA! - Respirei fundo, pois sabia que não tinha acabado ali, e não demorou muito até que Janson voltasse a me acusar:
- Você já chorou por alguém? – Abri a boca para responder, mas não consegui; Bencini resolveu ser mais específico:
– Você já chorou pelo Urik? Por ele ter te magoado, ou por ter dormido com todas as garotas de Hampton e depois deitar na cama ao seu lado?
Desviei os olhos dele, Janson não estava perguntando, estava narrando um fato que ele mais do que ninguém sabia a resposta, devido a minha reação, ele completou:
- Então você sabe como me sinto... sabe que me sinto um lixo!


De repente, vi Janson no mesmo lugar em que estive quando implorei para que Urik me beijasse e aquilo realmente me entristeceu:
- Jan, me desculpa, eu... prometo que nós vamos conversar sobre isso em casa, eu juro!


Ele me olhou incrédulo, balançou a cabeça desaprovando o que eu acabara de dizer, então seguiu de volta pro carro falando:
- Vamos, você está atrasada para rever os SEUS amigos, seus e do Urik... quem sabe o Curtis não está lá também, não é? – No mesmo instante um frio glacial percorreu a minha espinha e eu não consegui me mover de imediato.


- Você não havia pensado nisso ainda, Elladora? – Ele sorriu com sarcasmo, para no instante seguinte completar a frase de forma séria e perigosa:
– Pois eu não venho dormindo nas últimas semanas imaginando que hoje pode ter sido a última vez que te beijei.


Nenhuma palavra foi dita durante o restante do percurso, Janson parecia estar arrasado, e eu estava confusa demais para argumentar, discutir ou agradá-lo; Então preferi compartilhar o seu silêncio a magoá-lo ainda mais.